Cartas de Clarice

Clarice é uma personagem de ficção misturada com a realidade. Inpirada em Clarice Lispector, escritora e jornalista brasileira, nascida na Ucrânia, mas veio para o Brasil aos dois meses de idade. Chegaram, de fato, a serem amigas muito próximas. Ambas escreviam com muita frequência, personalidade, vitalidade e energia. Clarice Lispector viveu quase duas décadas fora do Brasil e escreveu muitas cartas aos amigos, e com olhar cosmopolita ela fala sobre os absurdos do cotidiano, as agruras da condição humana e as banalidades da vida. Suas cartas foram reunidas na obra Todas as Cartas, publicada em 2020. Já a Clarice personagem é uma mulher forte e feminina – e feminista, é claro. Mas deixa claro, que o feminismo que pratica é pelo pelos direitos civis das mulheres: igualdade política, jurídica e social entre homens e mulheres. Sua atuação não é sexista, isto é, não busca impor algum tipo de superioridade feminina, mas a igualdade entre os sexos.

Aqui nesse espaço, sempre veremos o lado intimista e psicológico de Clarice. Suas vivências, seus amores, sua interpretação tão peculiar da vida, com toques de humor. Clarice, ao contrário da homônima escritora, era muito irônica e bem humorada, embora, às vezes, tivesse momentos intensos de irascibilidade.

Começa aqui as histórias sobre a personagem e suas vivências. Enjoy!

Chovia, mas como chovia. Um mundaréu de água caia do céu e estalava sobre a terra. Clarice pensou em Pablo Neruda. Eram cúmplices em sentimentos, loucuras… mas a chuva era a união completa dos dois em um só. Fundiam-se. Dizia aos amigos mais íntimos, que privavam de sua intimidade emocional, que, como ele, havia vivido, e muito – por essa época, cismou que morreria aos 36 anos. Era uma forma de homenagear a si e ao poeta, irmanados que estavam na prosa e no verso. “Confesso que Vivi” era seu livro de cabeceira. Leu e releu, mas tanto, que a capa despedaçou-se.

Não era o caso de comprar outro, mas de manter aquele cujas folhas receberam sorrisos e lágrimas. Era único, assim como o amor ao poeta. Nele, tudo gostava – a prosa, o verso, as extravagâncias, as doideiras, as excentricidades e, em especial, a delicadeza de seu amor para com as mulheres. Mantinha a obra como preciosidade, e rara. “Era a testemunha impressa de como duas almas podem se encontrar através da tipografia”, relatava, num misto de orgulho e paixão. Mandou encardená-lo em couro marrom e escritos em dourado. E repetia à exaustão, tal qual mantra: “minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta”. Ria e dizia para si que pretensão e água benta cada um tem qto quer.

Certa vez, o amigo Amadeus, a quem chamava de Mozart, jovem talentosíssimo, chef de cozinha, que montou o Atelier de Gastronomia em sua casa, em São Conrado, no Rio, presenteou-a com uma passagem para o Chile, mais precisamente Isla Negra, onde ficava uma das três casas do poeta, aquela que certamente ele mais amou e mais refletia sua personalidade. Lá está enterrado. Sua última mulher Matilde Urrutia fez da casa, com centenas de apetrechos náuticos entre outros milhares de apetrechos dos mais variados cantos do mundo, o museu referência de Neruda: espécie de compêndio visual e imaginário da vida e da obra do poeta. Clarice ficou encantada com o lugar e quase foi retirada à força, pois já passara, e muito, da hora de cerrar as portas e ela, em transe, não queria ir embora.

Há tempos ela queria escrever a Mozart. Lhe era tão grata. Em verdade, sentia demais sua falta, e necessitava conversar, sem que ele estivesse mega ocupado com suas colheres de pau. Tinha querer especial por ele, e por tudo que fizera por ela, ainda que ele mesmo não tivesse noção. Certa vez, jantando no Atelier, brigou feio com Yuri, eterno e complicado namorado. Não foi barraco, mas deixou claro para o amigo sensitivo, que a maré não estava para peixe. Ele até pensou em intervir, levando sua Clarice até a cozinha. Repensou: ela precisava resolver eissa história com Yuri de uma vez. “Que faça a sua DR”, esbravejou. A cozinha pegou fogo. Todas às vezes que lembra dessa história, Clarice chora. Infindavelmente, chora.

Olhou para a pena, mas, nesse dia, optou pela máquina. Tinha lá suas esquisitices e crendices.

Meu amado Mozart,

Como Rosa de Luxemburgo, vc sabe, sou missivista militante. Embora creia que nem sempre as palavras conseguem expressar a plenitude dos nossos sentimentos, pois elas aprisionam a voz, e a voz, por sua vez, as ideias, acredito – muito – nas cartas. Talvez tenha sido até positivo não ter conseguido me comunicar na última sexta-feira. Assim, posso estar aqui, agora, no meu 385, conversando com você. Pelo telefone, naquela sua sexta tão cheia de afazeres, é quase certo que nosso papo seria telegráfico.

Veja. Bateu enorme saudade do amigo. E a saudade é o pior castigo. É mto pior que mala sem alça em aeroporto terceiro mundista, daqueles bem chinfrins, que não tem elevador, nem escada rolante, nem nada. É a pé, mesmo. Pior, o vôo sai pelo andar de cima e você, incauto, está no de baixo, com aquele trambolho, sem saber como carregar, aonde põe, se debaixo do braço, se agarra pela barriga, se leva na cabeça. Assim é a saudade, qdo castigo. Uma dona vaidosa, sem hora para chegar e muito menos partir. Carta nela!

A revolucionária Rosa escreveu constantemente, incluindo cartas apaixonantes a amigos íntimos e para as colegas feministas Clara Zetkin e Luisa Kautsky. 

Ana Cecilia Dinerstein

Era uma noite calma, doce. Na vitrola, Bolero, de Ravel, que bisei e bisei, na paz do meu lar. Uisquinho descendo redondo, felizmente, pq qdo desce atravessado, haja fada madrinha! Chovia, torrencialmente, como hoje. Sua lembrança foi inevitável. Tinha acabado de falar com meu querido pai. E refletia sobre um texto que li recentemente: “muitas vezes é exatamente por perceber o qto a vida é maravilhosa que nos sentimos fracos e sem forças.

É a sensação de estarmos de frente com o infinito, o imponderável, o absoluto. O desafio, muitas vezes, é compatibilizar esses três sentimentos com a vida comum, tão finita, ponderável e, sobretudo, relativa. Talvez seja esse o desafio – conviver de maneira intensa e profunda com essas contradições – que os poetas e os amantes conhecem tanto”. É. Não me pergunte quem escreveu, não lembro. Pode até ter sido eu. Vai saber?! Tenho tantas anotações, fragmentos, pensamentos soltos, escritos por todos os cantos. É minha compulsão literária. Mas o texto bateu firme na minha cabeça, martelando, martelando.

Naquela sexta, talvez estivesse passando por mais uma jornada de auto-conhecimento e de tentativa de identificar minhas emoções. Às vezes, tenho a sensação de estar vivendo uma novidade, o inédito – se não em mim, pelo menos num mundo cada vez mais conturbado e difuso. Não raro, pinta aquela sensação do que fazer com as emoções, como com a própria vida. Mas digo, meu anjo da guarda, nada como um dia após o outro, após o outro, após o outro, após o outro. A terra continuará girando, girando, alheia aos sentimentos individuais. E ter vc na minha vida é uma dádiva que agradeço aos deuses todos os dias – o farei até a eternidade. Amo-o. Me queira bem sempre, assim como ardentemente eu o quero.

Remate:
… nunca se esquece com quem dormiu
é o fogo eterno do corpo
do teu corpo sobre o meu
da tua mente rebuscando
a minha floresta …

Sua sempre,
Clarice

Nota benne: irei ao Rio em breve, só para te ver. Aguarde o rufar dos tambores!

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