Histórias híbridas de uma senhora de respeito.

Carmen é o nome q dei à minha saudosa máquina de escrever, uma Olivetti Praxis 20, em homenagem à querida escritora e jornalista Carmen da Silva — por essa época, eu tinha por hábito dar os nomes dos meus ídolos aos meus parcos bens materiais. O Volkswagen Voyage era carinhosamente chamado de Pablito, em tributo ao poeta Pablo Neruda. Minha bicicleta Caloi Ceci atendia pelo nome de Rosa, em deferência à Rosa Luxemburgo. Assim, todo o tempo, eu estava acompanhada pelos meus iluminados. Eles estavam sempre comigo e eu com eles.

Carmen é uma querida. Se estivesse viva, faria 100 anos. Mulher à frente de seu tempo, em todos os aspectos. Uma das brasileiras que mais bateu na tecla da opressão feminina. Ela é uma das minhas muitas inspirações, junto a outras tantas mulheres que defenderam e defendem o pão nosso de cada dia com palavras. Palavras q ensinam, traduzem sentimentos, contam histórias e causos, despertam a consciência feminina, alertam para a necessidade de sermos sempre um ser político. E, last but not least, boas de briga, caso contrário não votaríamos nem para síndico de prédio. Sempre gostei do jeito de escrever de Carmen: objetivo, divertido, sem embromações ou rodeios. Firulas, rapapés e salamaleques não eram com ela. Os “nem-sim-nem-não-antes-pelo-contrário” nunca fizeram parte de suas opiniões. Ponto.

Carmem da Silva era uma mulher à frente de seu tempo, em todos os aspectos. Uma das brasileiras que mais bateu na tecla da opressão feminina.

Nascida na portuária Rio Grande, interior do RGS, Carmen seguiu o caminho inverso ao destinado por gênero e berço às moçoilas da sua provinciana cidade. Fechou as portas às convenções sociais, arrumou as malas e se mandou. No outro lado do Rio da Prata encontrou espaço p florescer intelectualmente. Morou 13 anos na Argentina e outros tantos no Uruguai. Não casou de papel passado e não teve filhos, mas não deixou de amar e ser amada; intensamente. Fez a cabeça de muitas mulheres nos anos 60 e, principalmente, depois deles. Também recebeu inúmeras e ácidas críticas por sacudir o “marasmo em que dormitava a mulher brasileira”. Nas terras tupiniquins, iniciou a carreira jornalística na Editora Abril, em 63, no comando da coluna “A Arte de Ser Mulher”, na revista Claudia. A própria Carmen não gostava do nome da coluna, achava-o piegas, um “tom melíflua” que não casava com o enfoque que pretendia dar ao espaço.

Carmen no lançamento de A arte de ser mulher, 1966, Editora Civilização Brasileira, na Domus

Naqueles idos, não tinha essa de mulher dizer eu gosto, eu quero, eu faço, eu desejo, exceto se fosse circunscrito às dependências do lar, ainda assim dependia se havia gastos financeiros envolvidos. Se tinha, o homem, mesmo o mais dócil, exercia – exerce! – o poder idolatrado: controlar o dinheiro q a mulher gasta, mesmo qdo o dinheiro é dela. Tá bom: nem todos, mas quase todos. As pretensões femininas giravam em torno das vontades masculinas. Com raras e honrosas exceções, mulher não cogitava o desafio de ser. Ela ia, seguia o condicionamento ancestral de uma sociedade estruturada no patriarcado, na lavagem cerebral masculina. Um tipo de sabotagem e demolição da personalidade feminina em que alguns homens são habilidosos. A afirmação pessoal da mulher para uns é quase ofensa: “Se exprimimos opinião diferente não é para agredi-lo, humilhá-lo, competir ou fazer vedetismo. É simplesmente pq pensamos de outro modo. Direito q nos assiste”, alertava a colunista.

Carmen chegou-chegando para a sua época. Puxou a toalha – vapt! Veio tudo… xícara, prato, colher, flor, copo, alguns pais, maridos, namorados e tdo o mais q estava sobre a toalha de rosas. Botou o dedo na ferida. Abordou temas de arrepiar os cabelos da classe média reinante:  trabalho feminino, sexualidade, aborto, dupla moral, maternidade, orgasmo, infidelidade. Foi precursora do movimento feminista no Brasil qdo assunto de mulher-de-respeito era piano-crepes-georgette-decoração-moda-culinária-marido-filhos-família. As responsabilidades do casamento-feliz eram sempre da mulher e a ela não cabia reclamar da vida, especialmente no retorno do homem ao lar. Devia estar bonita, refrescada, contente. E a casa arrumada.

Vamos combinar que Carmen não era feminista de queimar sutiã e nem de assumir posições radicais. Qdo começou nas lides jornalísticas as publicações brasileiras dirigidas às mulheres tinham uma abordagem conservadora sobre as questões femininas. Davam conselhos matrimoniais à beça – e sempre pelo viés masculino. Um consultório sentimental em que a mulher é um apêndice do homem e deveria envidar todos os esforços para agradá-lo e fazê-lo feliz. Os textos reforçavam os costumes da sociedade patriarcal da época. As redações eram predominantemente masculinas e, creiam-pasmem, antes de Carmem assumir o comando de “A Arte de Ser Mulher”, quem escrevia a coluna eram homens sob pseudônimo de D. Leticia!

Carmen da Silva, dona do seu nariz, intelectualizada, vanguardista, não queria assustar suas leitoras, mas conquistá-las: “Eu malhava em ferro quente, ia devagar, mas sem recuo, sem fazer concessões nas ideias, mas evitando termos que poderiam chocar e criar anticorpos”. Carmem pregava  que a mulher deveria tomar as rédeas de sua própria vida, buscar seus próprios horizontes além do lar e conquistar novos papéis na sociedade, deixando a passividade de lado. Não à toa, sua coluna de estreia na Abril tinha por título “A Protagonista”. Esse período inicial da coluna é denominado por ela de a “fase do despertador, ou fase de Lázaro: acorda Bela Adormecida, levanta-te e anda!”.

Carmem pregava  que a mulher deveria tomar as rédeas de sua própria vida, buscar seus próprios horizontes além do lar e conquistar novos papéis na sociedade, deixando a passividade de lado

Vale destacar que a revista também buscava uma articulista com visão progressista para assumir a coluna, tanto que abriu espaço para uma mulher como Carmen da Silva. Chamada de “mulheróloga” por Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo de Sérgio Porto, que escrevia uma coluna de humor – já nos anos 70, a feminista q sempre habitara dentro dela estava instalada de vez. Em 75, Carmem assumiu posição mais engajada e combatia com franqueza “a exploração da mulher, a asfixia de sua personalidade, a manipulação de sua afetividade e a tenaz lavagem cerebral tendente a fixar a ideia de inferioridade natural do sexo feminino”.

O sucesso dos seus textos mesmo despertando a ira masculina por martelar na questão da opressão feminina, abriu-lhe enorme espaço e Carmen passou a dar palestras em todo o Brasil. Tornei-me sua fã confessa e incondicional.

Revendo minhas mulheres – tenho coleção numerosa de biografias femininas – bateu enorme saudades da gaúcha. Saudades continentais. Oceânicas. Procurei por Carmen na minha estante e fui lembrada que emprestara meu bíblico “Histórias híbridas de uma senhora de respeito”, sua autobiografia, e ele não me foi devolvido. Amo esse livro. Já li e reli uma dezena de vezes. Passada a raiva da lembrança do larápio, amigo q não sei por onde anda e metido – no bom sentido – a entender do universo feminino, comprei outro livro, agora, no site Estante Virtual. Felizmente o encontrei. Há muito não é reeditado. Me vi uma vez mais envolvida na delícia de prosa da Carmen. E sua sabedoria.

Qdo escrevi sobre Maria Bonita e Mulheres no Cangaço, livro de Adriana Negreiros, me bateu uma certa tristeza de muitas vezes nadarmos, nadarmos, e morrermos na praia. Os dados do “Dossiê Mulher 2021”, publicado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, por exemplo, são desoladores: 98 mil mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar no Estado em 2020. As mulheres continuam sendo as maiores vítimas de crime de estupro (86,1%), ameaça (68,6%), lesão corporal dolosa (67,1%), assédio sexual (91,5%) e importunação ofensiva ao pudor (92,5%). Se viva estivesse, Carmem estaria na linha de frente e faria muito barulho diante índices. 

Embora a primeira edição de “Histórias híbridas…” seja de 1984, considero o livro atualíssimo. Claro que de lá pra cá, viramos de século e muitas coisas mudaram, mas continuamos lutando a mesma guerra, com eventuais vitórias em algumas batalhas. Alguns exemplos: somente em 2002, acredite, a falta de virgindade deixou de ser crime – o Código Civil retirou o artigo que dizia que homem podia pedir a anulação do casamento caso descobrisse que a esposa não era virgem. Até então, a virgindade feminina, ou a falta dela, no caso, era tratada como crime e justificativa plausível para divórcio; em 2006, foi aprovada a Lei Maria da Penha; em 2015, é criada a Lei do Feminicídio. Entretanto, os comparativos de empregabilidade e paridade salarial continuam extremamente desfavoráveis às mulheres. Na contramão da lei, o feminicídio aumentou epidemicamente no Brasil, e também em toda América Latina. Os índices de estupro idem. Gravidez precoce idem, idem…

Nesse mês de março marcado pelas centenas de comemorações do Dia Internacional da Mulher, lembrei-me da querida Carmen. Resolvi matar essa saudade escrevendo às mulheres e recomendando: leiam ou releiam Carmen da Silva. Meu bj no ❤️ de todas (os) vcs.

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